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O DOLOROSO CAMINHO PARA A INCONSCIÊNCIA

Adellunar Marge

A expressão da nossa identidade é justamente a nossa memória. O que construímos com o nosso pensamento e armazenamos no maravilhoso arquivo da nossa mente é que nos faz ser o que somos. Começamos mesmo como se fôssemos uma “Tábula rasa”, uma folha em branco, como afirmava o filósofo John Locke e ali vamos escrevendo a nossa existência e são essas lembranças gravadas que formam a nossa identidade e nos transforma em seres únicos, insubstituíveis. De repente, talvez pela intromissão da misteriosa proteína beta-amiloide, produtora de placas capazes de destruir as conexões entre as células nervosas, todo o patrimônio desse arquivo de lembranças começa a ruir. Cientistas dos maiores Centros Universitários da Europa e dos EUA se debruçam sobre as Apolipoproteínas e suas funções e o comprometimento de algumas delas com a lesão ou atrofiamento de neurônios através das misteriosas placas que dificultam ou impedem as suas ligações, impossibilitando o acesso aos arquivos da memória. Primeiro são os pequenos esquecimentos, lapsos quase imperceptíveis, depois, dificuldades mais sérias de compreensão, até ao alheamento gradativo, num verdadeiro processo de declínio cognitivo, conhecido como o “Mal de Alzheimer”.

Esse processo de deterioração dos neurônios foi diagnosticado pela primeira vez pelo psiquiatra e neuro-patologista alemão, Aloysius Alzheimer (1864-1915), que lhe emprestou o nome.

Analisando o caso da paciente Auguste Deter, de 51 anos, em 1901, o Dr. Aloys Alzheimer, como era conhecido, acompanhou o seu caso até a morte dessa paciente em 1906, quando constatou, através de uma necropsia, o atrofiamento dos neurônios e estranhos processos de bloqueio em suas ligações. Esses estudos continuaram através dos anos por renomados cientistas, nas mais importantes Universidades do mundo, mas até hoje não se conseguiu a cura para esse mal que aumenta a cada ano em todo o mundo.

Calcula-se que cerca de 44 milhões de pessoas são acometidas por esse mal em todo o mundo, um número que deve se elevar para cerca de 75 milhões em 2030 e para 135 milhões em 2050. A causa lógica desse aumento está ligada justamente a elevação da perspectiva de vida das pessoas. É um doloroso caminho para a inconsciência. Não sei se tão doloroso para o paciente, como para aqueles que o cercam e que assistem ao seu afastamento gradativo das relações com o mundo.

Há poucos dias eu a vi, nos seus 85 anos, com os cabelos tintos pela neve do tempo. Passou por mim na rua, acompanhada de sua cuidadora. Quando parei diante dela, não me reconheceu, embora eu dissesse o meu nome. Seu olhar enigmático, fixo mais em si mesma do que no mundo que a cercava, refletia uma distância desta existência que irá se acentuando dia após dia. O Mal de Alzheimer é um dos processos mais cruéis de degeneração, pois aos poucos, como aqueles antigos apagadores de lousa, vai apagando lembranças, lembranças que são a nossa própria vida e cuja ausência irá transformar a mente em uma folha em branco, como a tábula de Locke. Depois, despediu-se com um cumprimento formal como se não me conhecesse, como de fato não me reconheceu. Estampou no rosto um sorriso mecânico e sem o brilho de outros tempos e continuou o seu caminho. Eu a acompanhei com o olhar até que dobrasse a esquina, mas não estava mais ao alcance das minhas palavras de carinho ou do afeto que lhe dedicava desde os meus tempos de criança e que continuam vivos dentro de mim, mas agora distantes da sua compreensão. Mas não importa. O que importa mesmo é que nos recordemos e cultivemos as lembranças que não estão mais com ela mas permanecem em nós. Afinal, quantos anos vivemos e ainda esperamos viver em sua companhia.

Ela pode não compreender as minhas palavras de carinho no seu alheamento, mas eu continuo tendo-a em minhas recordações e em meu coração. É o que basta. Um dia o saber dos homens vencerá também esse doloroso caminho para a inconsciência.

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