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OS VALORES DO FALECIDO

Adellunar Marge

Não existe nada que suplante a beleza e a pujança da vida. No samba “ O que é, o que é”, Gonzaguinha expressa bem esse sentimento de apreço pela existência, aconselhando “viver e não ter a vergonha de ser feliz”. Mas justamente esse apego à vida que faz o ser humano e todos os animais lutarem desesperadamente por ela, carrega consigo a mais antiga das preocupações, que é a eterna luta contra a morte. A morte sempre foi o tormento dos vivos e um mistério insolúvel. Em todas as épocas e em todos os povos, essa “indesejada das gentes”, como dizia Bandeira, espreita os homens com a sua foice afiada esperando a hora de levá-lo, não se sabe para onde. Dilacerados pela inquietante dúvida, os homens idealizam os mais diversos destinos, e na impossibilidade de eternizarem-se na matéria, idealizam-se eternos em uma dimensão além do corpo, onde não possam mais ser tocados pela tal indesejada das gentes.

Na Grécia antiga costumava-se colocar moedas nos olhos de um falecido numa tentativa de agradar o Barqueiro Caronte, que atravessaria a alma do morto para o outro lado do rio Estige, onde o falecido, de acordo com as suas ações em vida, encontraria o seu destino de permanecer nas delícias dos “Campos Elísios” ou na escuridão do Hades profundo ou ainda  retornar em um novo corpo para uma nova oportunidade existencial. Essas destinações após a morte, com ligeiras modificações, sempre fizeram parte do universo de crenças das mais importantes religiões ou linhas espiritualistas no mundo.

Jamais foi dada a alguém a certeza absoluta, eu digo uma certeza cartesiana, da existência de outras dimensões além desta. Quaisquer afirmações a respeito sempre têm por base o campo da fé. Por isso, um dos mandamentos existenciais mais seguidos passou a ser aquele pregado pelos romanos: “Carpe Diem”, aproveitem os dias da sua vida, desfrutando ao máximo dos momentos agradáveis que a vida oferece. E as alegrias não estão apenas em grandes contentamentos, mas se escondem nos pequenos momentos do dia-a-dia que muitas vezes deixamos passar despercebidos e não os desfrutamos.

Um dia morreremos, sem dúvida e todos (ou quase todos) dirão que fomos bons, falarão das nossas qualidades, algumas que nunca tivemos ou pelo menos em tão grandes proporções. Afinal, o defunto, já desprovido de suas funções, como a própria etimologia do seu nome indica, será incapaz de fazer mais algum ato contestável. Por isso nomeiam-lhe defunto, do latim “defunctus” ou seja, sem função, desprovido de quaisquer funções vitais e, é claro, morais. Sai do complicado campo da moralidade para o confortável campo da amoralidade. É claro que em nosso velório falarão apenas das nossas qualidades e nossos defeitos serão momentaneamente esquecidos pelos amigos. É que a “indesejada das gentes” já traz dissabores demais aos que ficaram além de punir irremediavelmente o que se foi com a morte física e com a incerteza do seu destino. Assim, aflora um sentimento de compensação pela perda, uma espécie de medalha de mérito póstuma.

Por essas e outras incertezas, continua oportuno o mandamento latino do “Carpe Diem” e o que tivermos que fazer por alguém devemos fazê-lo em vida e não depois que ele se chamar saudade.

Nelson Cavaquinho (1911-1986), o grande sambista carioca, em um dos seus sambas magistrais “Quando eu me Chamar Saudade”, afirma com imensa sabedoria: “sei que amanhã quando eu morrer os meus amigos vão dizer que eu tinha bom coração” e continua “…por isso é que eu penso assim, se alguém quiser fazer por mim que faça agora. Me dê as flores em vida, o sorriso, a mão amiga…”.

Quase sempre há mais filosofia na letra de alguns sambas do que nas cátedras de uma Universidade.

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