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Meu irmão, meu professor

Seus olhos, já sem o brilho de antes, pareciam ter abandonado a vida. Fixavam um horizonte indefinido, inescrutável por um senso comum, talvez tentando expressar o mistério de uma existência que findava. Seu rosto magro deixava aparecer os ossos da face. Seus braços, antes fortes, quando brincavam com os irmãos mais novos ou arredavam pesadas peças naquele ferro-velho, agora eram quase que ossos apenas, cobertos por uma fina pele que deixava transparecer resquícios de veias estouradas, em forma de edemas por todo o braço e mãos.

Não respondeu a uma pergunta sequer. Permanecia com os olhos fechados e os braços com movimentos ritmados e automáticos. Quando gritei-lhe ao ouvido que era eu quem estava ali, ele não respondeu, mas abriu lentamente os olhos, ergueu o que pode o braço esquerdo e tentou fazer com a mão o gesto de positivo. Ele havia me reconhecido.

De todos os irmãos, o Adalmus é aquele de quem eu guardo os maiores ensinamentos na minha infância e adolescência. Com ele aprendi e desenvolvi o gosto pelas histórias de aventuras, descobri o segredo e o encantamento da leitura, percorri com a emoção viva da infância as trilhas de Hans Städen e, já na adolescência, a penetrar nos mistérios dos contos de Allan Poe.

Quando iniciei o primeiro ano do curso ginasial, ele já me havia ensinado um extenso vocabulário da língua francesa e a conjugação dos verbos “être” e “avoir”, que me repassava das suas aulas com o professor Mário Macedo. Em meados da década de 50, nos meus 15 anos, foi a bordo de uma Mercury conversível que ele me ensinou a dirigir. São tempos e imagens que não me saem da memória.

Amante do Bocha, o tradicional esporte trazido para a nossa cidade por imigrantes italianos, foi um grande incentivador desse esporte com bolas de madeira em nossa cidade e região e um dos fundadores do Clube de Bocha em Muriaé.

Mas uma paixão que jamais o abandonou foi o carnaval. Nas ruas, vestido a caráter de fraque e cartola, ou à noite nos bailes do Muriaé Tênis Clube, era uma figura destacada por sua animação.

Experimentou na infância os tempos difíceis da família e o trabalho árduo no ferro-velho, descravando alças de tachos, separando metais ou quebrando blocos de ferro fundido à marreta. Esses esforços excessivos jamais tiraram-lhe o ânimo, o bom humor ou a sensibilidade. Compunha músicas para as suas namoradas e as cantarolava no ritmo da serra manual cortando trilhos de estrada de ferro. Talvez por isso desenvolvera a musculatura nos bíceps que o tornavam um adversário difícil nas disputas de “queda-de-braço”.

Mas o tempo nos vence a todos na medida em que passa. Primeiro, reduzindo gradativamente as nossas forças, depois, minando sorrateiramente os nossos sentidos e amesquinhando a vida que antes era pujante. Assim, o meu irmão mais velho, ao peso dos seus 85 anos, deixou o campo da sua batalha existencial aos cinco dias deste mês de fevereiro. Mas o tempo não destrói as recordações cultivadas no coração. Essas, o tempo, esse destruidor de imagens, não alcança. Por isso, não chorarei a sua morte, pois as alegrias da sua vida superaram em muito a dor da sua partida.

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