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A cremação do Eremildo

O maior medo do Eremildo era ser enterrado vivo. Por isso, seu sonho era ser cremado. Aterrorizava-o a preocupação de ser enterrado e acordar com aquele montão de terra sobre ele. À noite tinha pesadelos e acordava suando por todos os poros. Sua mulher o acalmava com um copo de água e insistia para ele tirar aquilo da cabeça. Dizia dos avanços da Medicina e da impossibilidade de alguém ser sepultado vivo nos dias de hoje. Eremildo ia se acalmando com o carinho da mulher e acabava adormecendo.

Um amigo seu, muito sacana, às vezes brincava com ele: “Se você acordar com aquele fogaréu da cremação? Já pensou nisso?” Eremildo retrucava: “Ah, mas com 600 ou 700 graus de temperatura num segundinho… e já era, não dá pra sentir nada…!”

Um dia, Eremildo resolveu tomar a decisão de procurar uma funerária e contratar o serviço. Pagaria financiado para não pesar no bolso e poderia dormir tranquilo. Ser enterrado vivo, jamais.

Os custos de uma cremação estavam lá nas alturas, mas após algumas pesquisas de preço, acabou contratando os serviços da Funerária Fogo Amigo, uma empresa que se dizia experiente no ramo e cujo sorriso da atendente lhe inspirara confiança. Pelo contrato, a funerária cuidaria de tudo, incluindo a urna, as flores, as velas e a cremação, é claro. Com um pequeno acréscimo no custo, contratou também os serviços de algumas carpideiras para chorarem copiosamente no seu velório. Vai que nenhum amigo ou familiar chorasse! Não ia se submeter a esse vexame. A cremação seria feita em outra cidade, mas a família receberia o potezinho de cinzas para dar a elas o fim que mais aprouvesse à família ou ao desejo do falecido.

“Mas, e na hora da tal ressurreição dos mortos?”, ponderou um amigo. “Ah, não quero nem saber, meu medo é ser enterrado vivo. Eu quero é virar cinza”, dizia o Eremildo.

Eremildo ainda viveu mais um bom tempo, pois era um sujeito saudável e cuidava bem da saúde. Mas como acontece com todo mortal, um dia ele “abotoou o paletó”. Sua família consternada, atendendo ao seu pedido, entregou o corpo à funerária para satisfazer os desejos do morto.

No dia do velório, os amigos acorreram à capela funerária para render-lhe as últimas homenagens. Falaram sobre as qualidades do Eremildo, qualidades tantas que nem ele e nem os membros da família conheciam. Nestor, seu amigo de infância, tomou a palavra e, com a voz embargada, desfiou aquele rosário de méritos, o que levou todos às lágrimas. As carpideiras, mesmo não entendendo as metáforas do Nestor, choraram como nunca haviam chorado (pelo menos por aquele preço). E o padre e o pastor recitaram trechos belíssimos das Escrituras. Preces feitas e encomendada a alma, a urna foi fechada e levada para a tal cidade onde o corpo seria cremado. Dois dias depois a família recebeu pelo Sedex o potezinho com as cinzas do Eremildo. Um pote de uma porcelana um tanto quanto barata, mas com uma bela inscrição em latim. A viúva, ainda inconsolável, colocou o pote em cima do piano. Ficaria ali até o mês seguinte, quando a família iria passar uns dias na praia e lá as cinzas seriam jogadas ao mar. O último desejo do falecido.

Na véspera da partida, a família viu pela TV o escândalo da Funerária Fogo Amigo. A polícia, após denúncias, descobriu que os safados dos donos enterravam os corpos em uma vala comum e colocavam cinzas de palha de arroz dentro dos potes. Na sede do suposto crematório havia uma montanha de cinzas conseguidas de uma máquina de beneficiar arroz que funcionava ao lado. A viúva, num acesso de raiva, jogou as cinzas no vaso sanitário e acionou a descarga.

O pobre do Eremildo foi enterrado mesmo, contra o seu gosto. Se estava vivo, ninguém jamais saberá, mas teve o consolo da companhia de dezenas de incautos como  ele  que haviam caído no golpe da Funerária Fogo Amigo.

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