O dourador de pílulas

Às vezes o amargor de um remédio costuma ser disfarçado por sabores artificiais, pelas formas e cores de sofisticadas embalagens, artifícios que possam enganar de algum modo aquele gosto horrível de alguns fármacos. Seria como “dourar a pílula” para iludir o paciente.

Douradores de pílulas existem por aí, aos montes, valendo-se de artifícios, habilidades e competências e de todos os demais meios para fazer crer que é aquilo que realmente não é. São artistas da palavra e da argumentação que usam a magia e a polissemia de um vasto léxico para levar você onde você, de fato, não pretendia ir.

Assim era o Florisvaldo, servidor mais antigo que o rascunho da Bíblia e, por isso mesmo, profundo conhecedor dos meandros das prestações de contas de qualquer município. Florisvaldo frequentava todos os cursos ministrados em Salvador e até seminários menores em Ilhéus. Todos dentro da sua área. Por isso era imbatível em suas argumentações e contratado a peso de ouro para organizar aquelas planilhas chatas e complicadíssimas de prestação de contas daquele distante município do sertão baiano.

Com a sua astúcia e conhecimento conseguia até provar que o capuz da Chapeuzinho Vermelho era mais azul do que o céu do sertão baiano. Conseguia explicar marca de batom com tanta eloquência que a esposa ainda pedia desculpa por ter duvidado dele. O danado era assim, convincente. Por isso era um expert nas prestações de contas.

Mas depois que surgiu aquele juiz lá das bandas do sul ele passou a ficar meio ressabiado e o sono já não lhe vinha fácil.

Como toda casa construída na areia está sujeita a cair, um dia a casa caiu. Era uma prestaçãozinha de contas à toa. Uma pontezinha sobre o Ribeirão Carcará, com menos de três metros de extensão e ele teria que provar, com argumentos irrefutáveis, o gasto de 3.600 sacos de cimento e de 38 toneladas de vergalhões. Essa, sim, era uma empreitada difícil para ele.

Florisvaldo não conseguia mais dormir, e quando dormia era sacudido por pesadelos e neles via aquela pontezinha, maior do que a ponte Rio-Niterói, desabando sobre o Ribeirão Carcará, agora transformado em mar, em seu pesadelo. Já sonhava com aqueles homens de óculos escuros à sua porta, seguidos por aquele juiz de toga negra.

Naquela manhã acordou recebendo a intimação de instâncias superiores pedindo para justificar, com planilhas de cálculos, o gasto de todo aquele material numa obra tão pequena. Suando por todos os poros, Florisvaldo começou a pensar nas estratégias possíveis dentro de todos os recursos linguísticos da Contabilidade pública, que dominava tão bem. Assinou a intimação ainda de pijama. Depois, tomou o seu banho, vestiu o seu terno cinza, a mulher assentou-lhe a gravata com aquele nó triangular costumeiro que, naquela manhã, apertava-lhe mais a garganta do que de costume. Pegou sua surrada maleta de couro e saiu, como de costume. Na hora habitual do almoço não apareceu, e nem à noite.

Três meses depois, Jucileia recebeu notícias de Florisvaldo. Estava em Cochabamba, no interior da Bolívia, vendendo quinquilharias em uma feira de ambulantes. O camelódromo de lá…!

Deixe um comentário


Outras Notícias