O avesso de Beethoven e Cartola
A música, ao lado da poesia, sempre foi um dos maiores veículos de expressão da sensibilidade humana. Deve ter surgido logo depois dos primeiros sons humanos expressando sentimentos de dor pela morte de um ente querido ou sentimentos de alegria, ruflando tambores de troncos ocos ou outra percussão. Instrumentos musicais mais elaborados só surgiriam bem mais tarde e, muito mais tarde ainda, a nomenclatura das notas musicais, tiradas pelo monge italiano Guido d’Arezzo das primeiras seis frases do hino a São João Batista, de Paolo Diacono. Os instrumentos musicais, cada vez mais aperfeiçoados, aliaram-se à voz humana para traduzirem, cada vez melhor, as melodias idealizadas pelo gênio musical do homem.
O gosto musical varia de indivíduo para indivíduo, do funk às mais elaboradas composições de um Beethoven ou de um Agenor de Oliveira, o nosso inesquecível Cartola. Influi nesse gosto a formação cultural de cada um, fruto de sua vivência familiar ou de grupo e da sua própria sensibilidade interior, fatores que orientam o seu gosto para esse ou aquele tipo de música.
Lembro-me dos anos em que estudei na minha querida Escola São Paulo, do primeiro ano do antigo “Ginasial” ao terceiro ano do “Segundo Grau”, como se chamavam na época. O cônego Ivo Sebastião da Cunha, diretor da escola, fazia tocar nos alto-falantes da escola, antes do início das aulas e na hora do intervalo, árias de óperas e movimentos de sinfonias dos mais consagrados autores. Pelos alto-falantes daquela escola eu fui apresentado, a partir dos 11 anos de idade, à Beethoven, Bach, Carlos Gomes, Von Supé, Tchaikovisky, Handel, Verdi e tantos outros. Quantas vezes eu saía do pátio, subia as escadas daquele varandão e me aproximava do sisudo cônego Ivo, postado de pé naquela varanda, para perguntá-lo: “Com licença, padre, qual o nome desta música que está tocando?” E o padre, orgulhoso do objetivo atingido, dizia o nome da música, do autor e ainda acrescentava um pequeno comentário sobre a obra.
Assim eu fui me familiarizando com os grandes clássicos da música, ao mesmo tempo em que acrescentava ao meu gosto pérolas da música popular da época, como sambas-canções, boleros e blues. Escuto diariamente essas músicas. O Youtube é ilimitado para se ouvir o que se quer, mas o espírito humano é indagador por natureza e está sempre buscando.
Há uma semana, por exemplo, eu tive uma estranha curiosidade. Queria saber como seria escutar uma música ao contrário, ou seja, de trás para frente… ao avesso. Curiosidade de saber como seria ouvir a “Quinta Sinfonia” de Beethoven ao contrário. Como eu não tenho nem habilidades nem competência para lidar com programas de computador, recorri ao meu filho Otávio e ele me fez a gentileza. Dali em diante foi uma aventura e tanto. Ele me proporcionou ouvir o avesso não só da “Quinta Sinfonia” de Beethoven, mas da “Tocata” e “Fuga de Bach” e, quem diria, o avesso de “Preciso me encontrar”, do Cartola. Nunca imaginei escutar a “Quinta Sinfonia” do gênio alemão iniciando com um mi bemol seguido pelos três sóis. Coisa de louco, bicho! Mas interessante mesmo é o processo com as músicas cantadas. O emblemático samba do Cartola, na voz do próprio compositor, parece cantado em um idioma desconhecido, com os fonemas invertidos. Mas ainda assim, as composições mantiveram o mesmo arrebatamento e o mesmo encanto que as fizeram imortais.