À Dona Olívia
Naqueles idos das décadas de 20 e 30, o frio devia ser mais intenso lá pelas bandas do Canteiro, naquele alto de serra de estradas barrentas, onde a condução, além dos carros de bois, eram os lombos de cavalos e de burros de andadura lenta e compassada.
Naqueles tempos, que já se perdem na memória, a menina Olívia Isabel já meditava os seus sonhos, embalando em seus magros braços de criança aquelas bonecas de pano recheadas de palha de milho e vestidas de retalhos coloridos, da cor dos sonhos da menina, que ela mesma costurava. Nascia a sua vocação de costureira e estilista, que faria sucesso décadas depois, com a sua máquina Singer. O som do pedal daquela máquina, que a acompanharia por longos anos, soava como música em seus ouvidos, fazendo jus ao próprio nome da máquina.
O ofício de costureira na jovem Olívia transcendia a função de apenas costurar e projetava-se no campo da arte e da criatividade. Tornou-se referência na sua profissão. As linhas multicoloridas transitavam dos carretéis e da carretilha para a agulha Simanco e iam unindo as partes do tecido e a obra ia tomando forma. Não era um simples ofício para a jovem senhora Olívia, era o seu trabalho árduo para o sustento e formação da família: dois casais de filhos sob a sua responsabilidade.
Inteligente e criativa, Olívia acompanhava os rumos que lhe apontava a modernidade. Sua máquina agora já possuía um pequeno farol que iluminava o caminho trilhado pela agulha quando o seu trabalho avançava noite adentro para cumprir os prazos de entrega. Depois, quando as suas pernas já sentiam o peso daquele pesado pedal gradeado, adaptou um motor à sua Singer. Agora, a agulha deslizava mais rápida sobre o tecido, deixando atrás de si os tecidos unidos na precisão geométrica da costura. Assim foi a vida de Olívia, mulher lutadora, destemida, costureira de mão cheia, que ainda acumulava todas as outras funções domésticas que a vida e os filhos lhe exigiam.
O trabalho nunca lhe aborrecia o espírito. Seu gênio sempre amável e as suas atitudes gentis, embora sempre firmes, faziam-na respeitada por seu largo círculo de amigos. Explicava o seu bom relacionamento humano com uma frase objetiva que lhe servia de norte: “O mundo é largo… tem lugar pra todo mundo”.
Diversas vezes me confidenciou que gostava muito de política e em período eleitoral acompanhava com interesse o desenrolar das disputas. Com o seu temperamento calmo e a sua imensa capacidade de cativar pessoas, teria feito sucesso na carreira política.
No último dia 18, poucos dias depois de completar 90 anos, mal iniciava a madrugada, a Dona Olívia encantou-se, como fazem as almas boas. Quis partir antes que o sol nascesse, ainda sob o brilho das estrelas, para conhecer um mundo novo. Aqui neste planeta largo, que tem lugar para todos, ela já cumprira o seu papel. Já fizera vestimentas de anjos para tantas coroações. Agora iria empreender uma nova aventura: queria fazer vestimentas de anjos e arcanjos de verdade e, quem sabe, criar até modelos novos para os anjos dos novos tempos. Será que na outra dimensão encontrará uma Singer tão boa como a sua? Ah…, se não tiver, não tem importância, faz as costuras à mão mesmo. Afinal, agora não terá mais pressa, pois terá toda a eternidade de tempo à sua frente.
Boa viagem, Dona Olívia. Em nossos corações ficarão as suas lembranças e uma imensa saudade de você…!